segunda-feira, 21 de novembro de 2022

UM PEDAÇO DO CEARÁ

 


Wilson Ibiapina

 

O professor maranhense Luís Carlos Gomes, que tinha entre seus alunos na Universidade de Brasília os físicos Rodger Rogério, Flávio Torres, Josué, Dedé Evangelista e sua mulher Mazé, gostava de dizer que o mundo estava sendo invadido por marcianos e cearenses. 

Brincadeira à parte, estamos mesmo espalhados em tudo quanto é país. Aqui no Brasil, por exemplo, quem acha que  São Paulo está abarrotado de cearenses não conhece o Acre. O deslocamento para o cantinho do Brasil, que faz divisa com o Amazonas, Rondônia, Bolívia e Peru, começou bem antes, no século dezoito. O historiador Arruda Furtado diz que foram três as causas determinantes das migrações encaminhadas para o Acre. A primeira, provocada pela seca. A segunda, a atração do eldorado amazônico e a terceira, o espírito aventureiro do cearense

Naquela ocasião, Fortaleza recebeu mais de 100 mil migrantes, chamados de retirantes, número que quadruplicou a população da cidade, na época de 25 mil pessoas. Muitos conseguiram viajar para o Amazonas O escritor Artur Reis registrou queEm março de 1879  já tinham entrado em Manaus mais de seis mil retirantes cearenses". José Carvalho de Souza, que nasceu na serra da Meruoca, que viveu mais de 130 anos, foi o cearense mais velho a habitar o Acre. O território boliviano virou brasileiro depois que foi invadido por seringueiros em busca de mais espaço para extrair látex. A mão de obra necessária para a expansão da fronteira e o consequente aumento das produções foi fornecida pelos cearenses que fugiam da seca e se alistavam como soldados da borracha. A primeira insurreição acreana foi em 1899. Liderados pelo cearense José de Carvalho, homens armados obrigaram o delegado boliviano Moisés Santivanez a deixar o Acre, sem precisarem dar um tiro.

Depois de duas outras   revoltas apareceu o gaúcho Plácido de Castro. Na época com apenas 27 anos de idade, liderou uma forte revolução, vencendo as tropas bolivianas, e proclamando, pela terceira e última vez, o território independente do Acre.

O território do Acre, que depois virou estado da federação, continua habitado por cearenses e seus descendentes. Desse novo pedaço do Brasil saíram pessoas importantes que se destacaram nacionalmente. Entre eles o jornalista Armando Nogueira, o poeta Thiago de Melo, o médico Adib Jatene, o coronel Jarbas Passarinho e o ambientalista Chico Mendes. Há pouco tempo o cineasta Pedro Jorge de Castro foi a Xapuri fazer uma palestra. Num restaurante, o garçom puxou conversa:

- O Sr é de onde mesmo?

- Sou do Ceará, respondeu o cineasta. 

E o garçom encerrou a conversa: 

- Ah, pensei que fosse de fora.

 

EM UMA ELEIÇÃO

 


Wilson Ibiapina

 

Estava conversando com o jornalista Carlos Henrique de Almeida Santos sobre a “guerra” que vivemos à véspera da última da eleição presidencial. Conversa vai, conversa vem, o jornalista baiano lembrou-se de uma história que Toninho Drummond contava. 

Ocorreu na eleição de 1960, em Minas Gerais, um colega dele, alucinado por política, mas que nunca se definia, pois queria estar de bem com quem estivesse no poder, seguia o lema daquele político: “melhor do que esse governo só o próximo”. 

O tal jornalista, com a camisa de campanha do candidato, visitava diariamente os comitês de propaganda de Magalhães Pinto e Tancredo Neves. No dia que saiu o resultado das urnas, ele foi o primeiro na fila de cumprimentos. Chegou perto de Magalhães Pinto e foi logo exclamando: 

- Que luta, que luta meu governador. Mas sabia que íamos conseguir. 

Ao abraçá-lo, o novo governador foi falando ao seu ouvido: 

- Quero você no Palácio da Liberdade na minha posse. Não me falte.

O malandro jornalista, se mostrando bastante emocionado: 

- Puxa, governador, peça outra coisa. Assistir sua posse será impossível. Não estarei aqui em BH.

- Pra onde você vai, logo no dia da posse?

- Governador, estarei seguindo para Aparecida do Norte. Vou pagar a promessa que fiz pra sua vitória.

Que luta, que luta!!!

 

domingo, 11 de setembro de 2022

AS BATALHAS DA INDEPENDÊNCIA



Wilson Ibiapina

Foram muitas as batalhas travadas no país para que o grito da independência dado por Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, fosse ouvido no imenso Brasil. As pessoas, hoje, acham que bastou o grito para consolidar tudo. Muitos, até mesmo no Ceará, no Maranhão e no Piauí, acham que a independência caiu do céu, sem reação dos portugueses. 

Um dos confrontos mais sangrentos da guerra da Independencia foi o combate ocorrido no Piauí. Esse conflito ocorreu em 1823 quando Dom Joao XVI designou o major João José da Cunha Fidié para comandar as tropas portuguesas que iriam garantir parte do norte do país: maranhão, Piaui, Ceará continuasse fiel à Coroa portuguesa. Seria mais uma Guiana. A tropa portuguesa, organizada e com experiência em outras lutas, se posicionou armada de rifles, revolveres, espingardas, canhões e cavalos. Os brasileiros do Maranhão, Piaui e do Ceará armados de foice, facão, enxadas e pedaços de pau entraram na luta com instrumentos simples, não tinham armas de guerra e muito menos experiência. O combate às margens do rio Jenipapo, em Campo Maior, no Piauí, foi dos mais sangrentos. Segundo o escritor Leonardo Mota, foram os piauienses e os maranhenses que apelidaram os cearenses de cabeças-chatas. O Ceará enviara tropas a  fim  de ajudarem as do Piauí e Maranhão. Os soldados cearenses usavam bonés achatados, de onde a alcunha que não mais nos largou. Diz Leonardo Mota que qualquer gracejo de  que temos o crânio chato porque dormimos em redes, não passa de inócua tentativa de chateação.

Foi uma das mais marcantes batalhas travadas na guerra da independência brasileira, e que  consolidou o território nacional.

Os livros de história contam que em poucas horas de embate corpo a corpo, 200 brasileiros morreram, um número superior ao de todas as baixas ocorridas na Independência da Bahia (durante o movimento, que se estendeu por um ano e quatro meses em Salvador e arredores). Houve aproximadamente 150 mortes no lado brasileiro. Os brasileiros perderam a batalha do dia 13 de março de 1823, mas não perderam a guerra.

Os portugueses, em sua maioria mercenários bem treinados, conseguiram furar o cerco e fugiram para Caxias, no Maranhão. Não resistiram as táticas de guerrilha dos sertanejos. À noite quando a tropa portuguesa dormia exausta, após o combate do Jenipapo, cearenses, piauienses e maranhenses, maioria de camponeses, lavradores acostumados apenas a lidar com a terra, foram no peito e na raça até onde estavam os invasores. Num assalto de surpresa ao acampamento militar, eles se apoderaram dos armamentos e da munição, de dinheiro e bagagem do Major Fidié. Soltaram os cavalos e cercaram o caminho para Oeiras, forçando o comandante português a se retirar do Piauí. Foram cercados e expulsos do Brasil em Caxias, no Maranhão. Hoje, em Campo Maior, tem um museu contando toda a história, inclusive exibindo foices, machados e pedaços de paus usados pelos bravos nordestinos para expulsar os portugueses e garantir a extensão do território brasileiro. Foram muitas batalhas até se chegar ao final, para que todos soubessem do grito de D.Pedro.

Muitos historiadores garantem que a verdadeira independência do Brasil ocorreu no dia 2 de julho de 1823, na  Bahia . Foi quando a cidade de Salvador amanheceu quase deserta. O Exército português estava acabando de abandonar a Bahia definitivamente. Há quem diga que naquela manhã o Sol brilhava. Até hoje os baianos festejam.

BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA



Wilson Ibiapina

No Brasil sempre foi assim, prevalece a versão oficial, a história de quem conta e não de quem faz . Alguns livros já contestam a versão oficial de que foram os portugueses os primeiros a chegar. Já existem livros, como o que foi escrito pelo jornalista Rodolfo Espínola,  que narra a chegada do navegador espanhol Vicente Pinzón, no inicio do século XVI, no litoral cearense, três meses antes de Pedro Álvares Cabral. Os livros que as escolas indicam para seus alunos continuam dando  os créditos da descoberta para os portugueses desembarcando na Bahia. Não levantam uma só dúvida. 


Agora , nas comemorações dos 200 anos das independência, a principal responsável pelo acontecimento fica esquecida nas homenagens. Todo mundo sabe quem foi Maria Leopoldina da Áustria, a arquiduquesa da Áustria  a primeira esposa do Imperador D. Pedro I e Imperatriz Consorte do Brasil de 1822 até sua morte, também brevemente sendo Rainha Consorte de Portugal e Algarves entre março e maio de 1826. Teve sete filhos, um deles, dom Pedro II, herdeiro do trono brasileiro e imperador aos 14 anos de idade. Poucos lembram de seu papel de fundamental importância para a independência do Brasil.


Corria o ano de 1822 quando algumas províncias ameaçavam entrar em guerra contra o Principe-Regente. Dom Pedro foi a São Paulo para tentar garantir o apoio dos paulistas à sua causa. Dona Leopoldina assumiu a regência interina. Foi quando chegou carta de Portugal exigindo que Dom Pedro retornasse imediatamente para assumir o reino em  Portugal.

Como conta os livros de história, Dona Leopoldina convoca o Conselho de Estado. “Durante a reunião, entendem que esta atitude é uma manobra para que o Brasil perca seu status de Reino Unido e voltar à condição de colônia.”

Dona Leopoldina assina o decreto de independência do Brasil em 2 de setembro de 1822. Em seguida, manda uma carta a Dom Pedro contando os fatos e reafirmando que era o momento de  romper com Portugal. Mesmo com o coração, perdido de amor pela amante Domitila, dom Pedro aceita a ponderação da esposa e cinco dias depois de enviada  e proclama a independência que até hoje não se sabe se ocorreu o brado que a história conta.

Agora, pela primeira vez, o coração de Dom Pedro sai do sarcófago da igreja da Lapa, na cidade do Porto e é trazido para o Brasil para as comemorações dos 200 anos da independência. Nem uma só palavra sobre dona Leopoldina.

O jornal Correio Braziliense publica artigo do maestro Jorge Antunes, professor aposentado da UnB, reclamando que dona Leopoldina é apagada da história quando o teatro municipal do Rio monta a Ópera Domitila, a marquesa de Santos, de João Guilherme Ripper, enquanto sua ópera composta em homenagem a Dona Leopoldina continua na gaveta. Há quem diga que o coração dele pertencia mesmo à amante que viveu no Palácio de São Cristóvão como dama de honra de sua esposa. Humilhada e sem o reconhecimento público de seu feito heroico que nos libertou de Portugal.

A revista Veja publica a opinião do pesquisador Paulo Rezzutti, que acha um exagero trazer o coração para festejar os 200 anos da independência: “é um carnaval macabro, um evento efêmero que a nada serve. Trazer um órgão humano dentro de um vidro, expô-lo em Brasília e dizer que esse é o grande evento comemorativo do bicentenário é trágico.” Tenho a impressão que seria mais oportuno concentrar as homenagens à Imperatriz que morreu dia 11 de dezembro de 1826 com apenas 29 anos de idade.

domingo, 7 de agosto de 2022

O BAIANO QUE ESTUDAVA A LUA

 Wilson Ibiapina


Ubirajara Pereira Brito

Morre em Vitória da Conquista o cientista baiano  Ubirajara Pereira Brito. Foi nessa quarta feira, 20 de julho, dia do amigo. Era físico nuclear, poeta, cozinheiro e boêmio. Bom de papo e de copo.  Nasceu em Tremendal e estava com 88 anos. O conterrâneo dele, Carlos Henrique de Almeida Santos, foi quem me apresentou ao Bira num final de tarde no  bar do Piantela, um antigo restaurante que existia em Brasilia.

O mais notável cientista que conheci. Era conhecido mundialmente. Foi professor  da Faculdade de Ciências de Orsay da Universidade de Paris e pesquisador titular do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), entre 1971 e 1974. Na Rússia passou também pelas universidades de Moscou e de São Petersburgo. Autor de alguns livros e um grande entusiasta da educação. Foi ministro de Ciência e Tecnologia no Governo Sarney e presidiu o CNPQ. 

 

Seu nome está relacionado entre os cem cientistas mais importantes do mundo no século XX . Mesmo perseguido político pela ditadura militar de 64, que o levou ao exílio na França, junto com seu amigo Oscar Niemeyer, chegou a ser convidado pela Nasa para examinar as pedras trazidas da Lua pela missão espacial norteamericana.


A profunda admiração que tinha pelas mulheres chegou a lhe causar problemas sérios. Um dia em Paris, quando varava as noites trabalhando em uma tese, sua mulher descobriu que tinha uma namorada. Enfurecida pegou as mais de cem folhas de sua tese que estavam datilografadas e jogou tudo pela janela do apartamento. Só lhe restou olhar pela janela, para ver as folhas voando carregadas pelo vento rumo ao Rio Sena.


Oscar Niemeyer ao lado do amigo Ubirajara

Uma outra história que ele gostava de contar envolve seu amigo Oscar Niemeyer. O arquiteto tinha tanto medo da morte que evitava viajar de avião. Quando estava com uns 90 anos perguntou ao seu amigo físico se o mundo ia mesmo acabar. Bira explicou que a terra ia esfriar congelando tudo e a todos. Mas teve o cuidado de tranquilizar o amigo informando que só ocorrerá  daqui a bilhões de anos. Oscar, com uma cara de preocupação e desespero só exclamou: 


- Estamos lascados, Bira!

terça-feira, 2 de agosto de 2022

COM A BANDEIRA NOS DENTES

 Wilson Ibiapina


O Ceará é o berço de alguns heróis. Eles se revelaram de muitas maneiras, mas principalmente nas guerras. General Sampaio que foi como soldado raso, lutou em muitas batalhas e sagrou-se patrono da infantaria. 


Outro cearense que virou herói na guerra do Paraguai é João Sorongo. O escritor Rui Pinheiro Silva, em seu livro “O Cavalo de Gonela” recorda esse cearense que era um boêmio que perambulava pelas ruas e botecos da pequena Fortaleza de 1864 . Quando estourou a guerra do Paraguai o governo partiu para o recrutamento “voluntário” para reforçar o pequeno Exército que na época não passava de 18 mil homens. João Sorongo caiu na malha da mobilização que juntou homens rudes do interior, sem a menor experiência militar, despreparados, sem instrução. Foram todos levados de navio para o Rio de Janeiro, onde durante alguns meses receberiam o devido treinamento. Aconteceu que os cearenses não tiveram tempo de passar por essas instruções e foram enviados para o campo de batalha com a coragem e a cara. João Sorongo, ainda em Fortaleza, chegou a receber, na hora da partida, uma Bandeira Nacional que havia sido confeccionada com fio de ouro por moças da sociedade cearense. O escritor Rui Pinheiro conta que ”o boêmio se emocionou, chorou de orgulho e prometeu defender a nossa Bandeira com o sacrifício da própria vida”. Sorongo  mostrou sua coragem em batalhas de Tuiuti, Itororó e do Avaí , onde “a tropa, sem o mínimo preparo militar, caiu numa emboscada e foi dizimada. João Sorongo  foi encontrado pela tropa do major Carolino Sucupira. Estava com as mãos decepadas. Na boca, entre os dentes, apareciam fiapos da Bandeira. Rui Pinheiro diz que “ali estava o bravo cabo-corneteiro que nem a morte fê-lo entregar a Bandeira brasileira”.

 

Estou falando dessa mesma Bandeira que uma cantora filha de brasileiros pisoteou durante um show em São Francisco, na California. Essa senhora de mais de 50 anos é filha do cantor baiano João Gilberto e da cantora  Miúcha. Isabela Gilberto de Oliveira, conhecida como Bebel Gilberto, nasceu em Nova Iorque em 1966. Ela sambou sobre a Bandeira depois que a recebeu de um fã. Ela se desculpou. Não sei se será perdoada. Com certeza será sempre lembrada pelo protesto desrespeitoso. Depois de sapatear sobre a Bandeira, ela cantou a música Bananeira: “Bananeira, não sei / Bananeira, sei lá...”


O boêmio com a Bandeira nos dentes, a cantora com a Bandeira nos pés. 

VÉSPERA DE ELEIÇÃO



Wilson Ibiapina

 

A disputa pelo governo do Ceará está acirrada. Os políticos em campanha só faltam  se atracarem nas discussões pelo voto. Os conchavos parecem um saco de gatos. Mas já foi bem pior.

Antônio Pinto Nogueira Accioly

Nada se compara com o que  ocorreu em 1912, quando o tenente coronel Franco Rabelo, com o apoio do presidente do país, marechal Hermes da Fonseca, entrou na corrida pelo governo do  estado. Do outro lado estava Antônio Pinto Nogueira Accioly, tentando se reeleger. Accioly era rejeitado pela população, o que não o impedia de lutar para permanecer roubando, perseguindo adversários, empregando familiares e amigos. O clima estava mais para urubu que para colibri, como dizia Estanislaw Ponte Preta. As mulheres de Fortaleza, que pertenciam a Liga Feminista, resolveram  fazer uma passeata com seus filhos para pedir o  fim dos desmandos promovidos pelo presidente da província, que era como se chamava o governador. Depois de muitos obstáculos, as senhoras conseguiram a autorização e a passeata em homenagem a Franco Rabelo, candidato a presidencia do Ceará no próximo quatriênio foi marcada para a tarde do dia 14 de janeiro, um domingo.  O Sr. Manoel Franco , conduzindo a Bandeira Nacional, abriu o protesto que seguiu da praça dos Mártires pela rua Barão do Rio Branco. A adolescente Odete de Paula Pessoa segurava um estandarte com os dizeres  ”Liga Feminista pro Ceará Livre. Umas duas mil senhoras e senhoritas, todas vestidas de branco. Muitas crianças estavam no desfile que era aclamado por onde passava. Ao término, já na praça do Ferreira, os discursos de encerramento acirraram os ânimos. De repente começa um tiroteio. A cavalaria entra em ação pisoteando crianças, mulheres. Muita gente baleada. Essa reação para dissolver o protesto que estava terminando pacificamente, selou a sorte de Nogueira Accioly. Fortaleza virou praça de guerra. O povo revoltado, durante três dias fez barreiras, destruiu a  praça José de Alencar, saqueou o comércio.

O escritor Hermenegildo Firmeza conta na revista do Instituto do Ceará que um jovem cronista que usava o pseudônio João dos Gatos, escreveu num jornal da cidade que  “um pequeno garoto, de calças curtas, onze anos, um nada, em luta como um homem, surgiu de uma esquina. Sobraçava um rifle, os olhos atentos, atravessou a largura da rua, de gatinhas, como um guerreiro ensinado e perito na audácia. Um velho cético e boêmio travou o seguinte dialogo com o menino:

 -  Onde vais?

-  Para as trincheiras da rua Formosa.

- Que diabo vais fazer, lá não tem formigas para guerreares?...

-  Mas tem couro de cão para espichar...

-  E a mamadeira?

O pequeno cearense levantou o rifle e gritou:

- Levo aqui; o leite é para o Accioly.”

Franco Rabelo foi eleito mas durou pouco no poder. As crises políticas terminaram colocando no Palácio da Luz o interventor  Fernando Setembrino Carvalho, o mesmo  general que comandou o massacre aos beatos de Antônio Conselheiro em Canudos, na Bahia.

Hoje, a ambição pelo poder continua seduzindo os políticos que estão de olho na eleição de outubro. 


sábado, 16 de julho de 2022

A LUA É UMA NAVE ESPACIAL?


Wilson Ibiapina




A Lua sempre foi um mistério. Desde que me entendo como gente  ouço a lua ser exaltada em prosa e verso pelos poetas apaixonados. O nosso satélite que brilha no céu é tema  de músicas desde  serenatas até    carnavais. Faz parte de muitas historias de amor. De morada de São Jorge e o dragão até de  nave espacial montada por alienígenas para nos espionar. É um enigma que o homem tenta desvendar. Nesses tempos de pandemia, de quarentena em casa, a televisão virou grande concorrente dos livros. Pois foi justamente na televisão que vi um documentário em que cientistas  da Nasa aparecem afirmando que a Lua é oca. Na série sobre “alienígenas do passado” a HBO exibe a teoria de que nosso satélite natural pode conter no seu interior um laboratório ou seria uma nave de ETs que nos observam aqui na terra.

Histórias envolvendo os mistérios da Lua vem de longe.  Em 1901,  H.G Wells escreveu o livro The first men in the moon (primeiro homem na lua.)  Em 1970 os cientistas  Michael Vasin e Alexander Shcherbakov, da Academia Soviética de Ciências, escreveram na revista Sputnik  que a lua é uma nave espacial criada por seres desconhecidos. E essa teoria toma ares de verdade quando se sabe que conhecemos apenas um lado do satélite. Agora mesmo  estão preparando missões para se descobrir o que há no lado oculto.

As agencias internacionais de notícias dizem que “ A missão chinesa Chang’e-4 foi a primeira a chegar ao lado mais afastado da Lua, assim como a primeira a descobrir a presença de olivina,  o que levou os investigadores a especular que o manto poderá conter olivina e piroxena em iguais quantidades, ao invés do domínio de um desses minerais. A olivina é um dos principais componentes do manto terrestre, o que poderá confirmar a teoria de que a Lua se formou com algum material que a Terra perdeu após o choque com um corpo celeste. Os minerais encontrados são, por sua vez, distintos das amostras da superfície lunar. A origem e estrutura da Lua têm sido temas de debate entre a comunidade científica. Dessa forma, a investigação chinesa poderá conduzir a um maior conhecimento acerca da evolução lunar e à confirmação da existência de um oceano de magma, teoria que ainda não foi confirmada”.

Assim, a missão chinesa vai pondo por terra as narrativas da ficção ciêntifica de que do lado oculto devem estar pista de pouso, portas que levam ao interior da nave, ou melhor da lua, de onde os astronautas já viram  sair fumaça e luzes. Nesse documentário que a HBO está exibindo há a informação de que o solo da Lua tem som de um sino,  como foi registrado pelos sismômetros instalados na Lua pela missão Apolo entre 1972 e 1977. Os astronautas da Apolo 12 jogaram o estágio de subida do seu modelo lunar que, ao bater no solo provocou, durante uma hora,  um som como fosse um sino. O astronauta Michael Collins,  da Apolo 11, conta em seu livro “O fogo sagrado” , que também ouviu sons estranhos enquanto sobrevoava o satélite. O filme de ficção cientifica “Moon fall” revela que paira sobre nós uma ameaça lunar. Diz que o satélite vai cair na terra.

Essas histórias todas só me lembram a marchinha que Armando Cavalcanti e Klecius Caldas fizeram para a Angela Maria cantar num carnaval do passado:


“Todos eles,
Estão errados,
A lua é,
Dos namorados.
(bis)

Lua... oh ! lua...
Querem te passar pra traz,
Lua... oh ! lua...
Querem te roubar a paz,
Lua que no céu flutua,
Lua que nos dá luar,
Lua... oh ! lua...
Não deixa ninguém te pisar.”

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Camocim no Ceará parou para ver hidroavião pousar

Dornier Do X, em língua alemã também referido como "Flugschiff" ("Barco Voador") foi o maior, mais pesado e poderoso hidroavião do mundo.  


Claude Dornier ao lado da
sua grande máquina
Neste ano completa 90 anos que o maior hidroavião já construído no mundo, o Dornier DO-X, desceu em Camocim, no Ceará, escala dessa única viagem. O avião alemão de 12 motores não teve o sucesso comercial que seu idealizador, o professor alemão Claude Dornier, imaginou. Depois de percorrer 43 mil quilômetros, foi levado para o Museu da Aviação de Berlim, onde terminou destruído em um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial.








Foi grande o alvoroço provocado pelo avião na pequena e pacata cidade cearece, Camocim, no dia 13 de junho de 1931. O avião, inventado no ano de 1903 pelos irmãos Wright, como querem os americanos, ou em 1906, quando Santos Dumont voou com o 14 Bis, em Paris, ainda era uma "coisa do outro mundo". Conta-se que, nos anos 50, na Serra da Ibiapaba, uma mulher perdeu o marido porque, ao ouvir o som de um avião, pensou que o mundo estava se acabando e resolveu contar-lhe que o tinha traído.

As companhias aéreas não existiam como hoje e os inventores ainda estavam com a mão na massa tentando colocar no ar aparelhos que transportassem pessoas mais rápido do que os navios e trens.

O hidroavião é equipado para utilizar uma superfície aquática como pista de pouso e decolagem. Na verdade, o transporte dessa modalidade nada mais é do que um barco voador.



O primeiro deles foi projetado pelo francês Alphonse Penaut (1876), mas nunca foi construído. Outro francês, Henri Fabre, realizou o primeiro voo de hidroavião em Martigues, França (1910), mas foi o projetista de aviões norte-americano Glenn Curtiss que pilotou o primeiro hidroavião prático em San Diego (EUA), e transportou o primeiro passageiro, ambos os feitos realizados em 1911. Nas décadas de 20 e 30, muitos países estavam construindo hidroaviões para uso civil e militar. Na segunda metade dos anos 30 começou a era dos hidroaviões gigantes, iniciada pelo Dornier.

Transporte seguro

O professor alemão Claude Dornier, em 1929, engrossou a lista dos que queriam colocar no ar um transporte seguro e rápido. Foi no estaleiro do Lago Constance que ele conseguiu concluir seu invento, batizado de Dornier DO-X. Um gigante hidroavião para o transporte civil. Podia levar 72 passageiros e 20 tripulantes.

O primeiro voo-teste, no dia 12 de julho de 1929, foi sobre o Lago Constance. Depois de outros testes, fez seu primeiro voo com 169 pessoas a bordo no dia 21 de outubro de 1929. Tudo testado e aprovado, o professor Claude parte para sua ousada viagem de longa distância. Levanta voo no dia 5 de novembro de 1930 num cruzeiro mundial.

A rota começou pela Europa, mais exatamente no Rio Reno. Foi a Amsterdã e de lá voou para Calshot, na Inglaterra, Bordeaux, na França, La Coruna, Espanha, e Lisboa, em Portugal, onde um acidente interrompeu a viagem. Pegou fogo na asa esquerda, o que atrasou a viagem em mais de um mês. Decolou no dia 31 de janeiro para Las Palmas, na Ilhas Canárias, onde enfrentou mais problemas. Bateu num banco de areia e o avião ficou parado por mais três meses. Depois de voar pela costa africana atravessou o Oceano Atlântico. O tanque de 16 mil litros de combustível praticamente vazio fez com que esse navio-voador descesse em Camocim, na manhã daquele dia 13 de junho de 1931.




A população de Camocim, mesma acostumada a ver a amerissagens (pouso na água) como a que o aviador Pinto Martins fez em 19 de novembro de 1922, tomou um susto quando viu o DO-X. O aviador Euclides Pinto Martins fez o primeiro voo dos Estados Unidos para o Brasil, saindo da Flórida. Nem esse feito do filho do Município de Camocim provocou tanta comoção na cidade. Pinto Martins pilotava o hidroavião biplano, de 28 metros de envergadura e dois motores "Liberty" de 400hp, cada. Acompanhados por um jornalista e um cinegrafista, decolaram uma máquina de oito mil quilos, criado na pioneira Fábrica Curtiss. Já o DO-X parecia um navio-voador movido por 12 motores. O DO-X mais parecia uma nave espacial, uma coisa do outro mundo.

Orlando Campos é um homem culto. Ler é seu passatempo preferido. A memória invejável faz a diferença. Os amigos o chamam de Google. Tem na ponta da língua resposta para qualquer pergunta sobre política, história, geografia ou conhecimento geral. Atualmente, o paulista mora em Brasília, onde dirige uma ONG que cuida do meio ambiente da Amazônia, mas já exerceu outras profissões. Militar da reserva do Exército, lembra que o hidroavião ficou em frente à Estação Ferroviária da cidade.



Pioneiro

1911 foi o ano do voo de um hidroavião que transportou o primeiro passageiro em San Diego (EUA), pilotado pelo projetista norte-americano de aviões, Glenn Curtiss

HISTÓRIA ORAL

Barcos no Rio Coreaú levavam moradores para a novidade

 Nos anos 30 e 40 do século passado, segundo relato de um antigo comerciante de Camocim, Ildemburgue Aguiar, na época criança com 9 anos, era grande o movimento de hidroaviões pousando nas águas do Rio Coreaú. Os aparelhos vindo dos EUA entravam no Brasil, passando por Belém, Camocim, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Pessoas de Fortaleza pegavam o trem que passava em Sobral e chegavam a Camocim para embarcar para aqueles destinos.

Até hoje a história é lembrada pelos mais antigos e já foi alvo de matérias como a que foi publicada pelo jornal "O Literário", de Camocim. No texto, o jornal fala de um tal Ildemburgue, que na época tinha 9 anos de idade. Orlando conheceu muito Ildemburgue Aguiar. Nas visitas que fez a Camocim estabeleceu amizade com o comerciante, cuja loja, por coincidência, ficava em frente à Estação Ferroviária. "Era uma figura muito simpática de porte caucasiano e que por várias vezes comentou sobre o DO-X", comenta Orlando.

Ildemburgue lhe contou que foi levado num barco, junto com outras crianças, para ver de perto o gigante. Os barqueiros cobravam uma pequena quantia para levar os curiosos para perto o avião.




Artur Queiroz, outro camocinense que viu o avião, conta ao jornal "O Literário", que o DO-X ficou parado ali de manhã até à tarde sem que ninguém desembarcasse. O avião tinha no seu interior sala de estar, bar, restaurante e cabine com cama. Se tinha passageiro a bordo nenhum se arriscou enfrentar o calor na pequena cidade sem uma atração que merecesse um passeio turístico, embora já fosse importante interposto comercial com ferrovia e porto. A demora foi suficiente para que os barcos de apoio carregassem combustível em latas de 20 litros que foram abastecendo o tanque da belonave que, segundo jornal, queimava 400 galões por hora. A inesperada visita virou notícia que correu mundo a fora. Em Fortaleza, muita gente se preparou para ir ver de perto o avião quando ele chegasse à Capital. As pessoas ficavam olhando para céu na expectativa de vê-lo passar com toda sua imponência.



O interior luxuoso do avião




No início da tarde daquele 13 de junho, o DO-X levantou voo em direção a Natal e de lá para o Rio de Janeiro, frustrando os que esperavam por sua passagem na Capital cearense. No Rio, ele foi fotografado sobrevoando a enseada de Botafogo. Do Brasil, seguiu para Nova Iorque, onde teve que ficar alguns meses por causa do inverno. O DO-X retornou a Berlim muito danificado. Com muitos problemas técnicos e sem êxito comercial, o projeto foi arquivado. O avião foi levado para o Museu de Berlim, onde foi destruído num incêndio provocado por bombardeios na Segunda Guerra Mundial. Em 1945, o DO-X desapareceu sem nunca ter entrado em serviço regular.



quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

SEMPRE GOSTEI DE PINGA

 

Fabiana Queiroz Damasceno


Não, essa história não é sobre mim, mas preciso de passar pela pinga, ou pela minha queridíssima fornecedora da melhor pinga dos goyases para que entendam de onde tirei tudo o que venho apresentar para vocês nessas crônicas adaptadas!

Por cerca de seis meses, viveria em Goiás Velho para levantar mais informações e entrar no ambiente da cidade que foi objeto de minha tese de mestrado.

Voltando à pinga, um dia, ao conversar com seu Nenzim do bar, soube que as cachaças que ele servia eram produzidas ali mesmo na região, num alambique bem artesanal que havia cerca de 15 quilômetros ao norte da cidade. A representante comercial por assim dizer morava na cidade, numa casinha bem modesta de fachada branca com portas azuis claras, passando a ponte da batata, seguindo a rua torta e ascendente que levava à paróquia.

Era Dona Menão, uma viúva como tantas outras, cuja personalidade havia sido reduzida e desidratada por décadas de um casamento prático com o Seu Menão, falecido a plácidos 8 anos. Ela havia sido dele por tantos anos que nem conseguia mais fazer valer seu próprio nome, nem na vizinhança nem na cidade. Mas era uma senhorinha muito simpática que aproveitava a visita dos clientes para longas conversas sobre a Goiás de outros tempos. Sempre contava as coisas com uma leveza tão crível que a gente pensava que tinha sido tudo tão bom como ela fazia parecer.

No começo, eu comprei três garrafinhas pequenas com diferentes sabores para provar. Foi uma aquisição lenta. Por mais de 50 minutos houve relatos adoráveis naquela voz macia, que falava um português meio truncado, mas com gosto de interior, de roça. Cada sabor tinha uma história, cada fruta vinha de um lugar mais para dentro da Serra Dourada. Tinham em comum o segredo daquelas bebidas tão únicas: todas eram curtidas ali mesmo, no quintal de Dona Menão, e ela fazia tudo sozinha!

Visitas familiares baixaram meu estoque daquelas atrevidas bebidinhas. Voltei à meia-porta da ladeirinha com meu irmão para mais daquele sabor para mim e para que levassem de volta à Brasília para presentear alguns amigos apreciadores. Os cabelinhos brancos se viam de longe, naquele fim de tarde quente. Fomos recebidos com festa. O volume das vendas entusiasmou Dona Menão, mas houve pouca conversa. Era hora de preparar a janta e ela não podia se demorar.

Quando fiquei sozinha com as minhas novas garrafinhas na casa novamente vazia, ajeitei-as calmamente sobre a mesa da cozinha para beber delas só daí a alguns dias. Meu paladar estava um tanto alterado pelas cervejas e comilanças da véspera e não queria desperdiçar aqueles sabores.

Eram 7 no total. Jaboticaba, tamarindo, buriti, cagaita, cajuzinho-do-cerrado, pitomba e pequi. Aqui as menciono na ordem decrescente de minha preferência. Jaboticaba era adocicada, licorosa, tinha um tom arroxeado bem bonito se colocada contra o sol. Foi a que acabou primeiro. Pequi já não gostei. Cheiro e gosto fortes demais. Só o amarelo do líquido era atrativo. Pena que as garrafas eram tão bagunçadas, cada uma de um formato diferente. Por rolha, um pedaço de sabugo de milho. Não serviam para decoração.

Voltei no final do meu primeiro mês na cidade para comprar mais pinga com jabuticaba, agora numa garrafa grande, para durar mais tempo. Encontrei Dona Menão mais disposta e dessa vez falamos até a noitinha. Ela até perdeu a hora da janta. Dei corda para suas histórias e não pude pensar em oradora mais orgulhosa e animada. Só quando falava do marido que os olhos baixavam da linha do horizonte, mas foram poucas vezes que o mencionou.

Contou de Cora Coralina. Disse que tinham sido um pouco amigas, mas que depois que ela se perdeu e a cidade inteira lhe virou as costas, quando ela se amasiou com aquele cavalheiro e mudou para longe para escapar da maledicência, perderam contato. Quando a poeta voltou para a cidade décadas depois, ainda carregava a pecha de leviana e Dona Menão, por ordem do marido, manteve-se à distância. Por não cortar completamente os laços com aquela mulher que ela admirava pela coragem e ousadia, vez que outra conseguia um portador que lhe fizesse chegar a Cora uma de suas garrafas mais saborosas, a qual fazia acompanhar de um curto bilhete com o seu nome em garatujas. Era tudo que podia escrever e sabia que a destinatária gostava muito de palavras.

Prometi que voltaria para prosear mais daí uns dias, mesmo que não precisasse de mais bebida. Era só para ouvir dela as anedotas de uma vida tão longa quanto trivial. Como podia haver tanta coisa para contar nunca cheguei a entender. Mas era delicioso passar algum tempo imersa num passado marinado pela distância, amolecido e açucarado. Diziam que ela contava 93 anos, mas nunca achei momento para confirmar a informação.

As visitas passaram a ser mais frequentes, voltava lá quase toda semana, quase sempre às quintas, que era o dia mais sossegado na casa. Levava bolo, biscoitos de pacote (como ela mesma falava!), pequenas guloseimas que ela comia com parcimônia entre uma historinha e outra. Ela perguntava como iam meus estudos com curiosidade. Expliquei que trabalhava em um documento muito antigo, de muito antes dela nascer, da época em que ainda havia ouro pelas redondezas. Tinha que entender o que estava escrito e adaptar para a linguagem dos nossos dias. Recebi um olhar brilhante de quem teve uma grande ideia. Fez menção de se levantar, mas desistiu. Logo engatou na história do Mascate João Damasceno, de quem havia comprado umas panelas muito pesadas havia mais de trinta anos, mas que ainda serviam como se fossem novas.

Um pouco frustrada pelos parcos avanços da tese, aceitei o fato de que teria de prolongar minha estada por pelo menos mais seis meses na antiga capital goiana. Reduzi minhas incursões às cachoeiras, ao bar de seu Nenzim e à casa de Dona Menão para me dedicar de forma quase exclusiva, um tanto alucinada ao documento que me levara à pequena cidade. 

Numa tarde de quarta, já à beira da insanidade, decidi dar uma volta. Ia rumo à casa da minha amiga nonagenária quando divisei, de longe, a porta toda fechada e a janela apenas entreaberta. Nunca me havia deparado com aquela configuração na faixada. Bati e veio me receber a vizinha carrancuda, Dona Mariana. Contou-me com tristeza que a amiga estava adoentada e que havia dormido, pelo que me pediu que voltasse no dia seguinte. 

Fiquei com o coração apertado e custei dormir aquela noite. Depois do meu café da manhã e antes de o sol estar muito alto no céu, cruzei ansiosa a ponte da batata. Senti uma espécie de alívio quando vi a meia porta aberta e a janela fechada. A cara de Dona Mariana se projetava com um olhar mais animado. Quando me viu já disse logo que Dona Menão estava melhor e que queria me ver se eu aparecesse.

No quarto quente, com pouca luz, a senhorinha descansava sua velhice e lutava sem muita disposição para melhorar e seguir nesse mundo dos vivos. Demostrou alegria ao me ver com um sorriso tímido e pediu que me aproximasse. Disse que não ia fazer rodeios e que tinha poucas esperanças de chegar à época das chuvas, período favorito do ano, quando o cheiro de vida e terra molhada tomava conta da cidade e a possibilidade de que o rio transbordasse trazia sempre alguma estranha expectativa. 

No banquinho à esquerda da cama, que servia de criado mudo improvisado, apontou para uma espécie de pasta rústica, em couro engraxado. Falou que não tinha muito na vida, mas que queria deixar de herança para a amiga da cidade um dos seus tesouros mais preciosos, mas que pouca gente saberia dar valor. Peguei o vulto e quando ia abrir, ela pediu que não o fizesse, que levasse como estava e guardasse num canto seguro e que só visse o conteúdo depois que ela já não pudesse nem fabricar e nem beber as deliciosas cachaças. Que jeito leve de se despedir ela arranjou!

Conversamos um pouco ainda, mas ela parecia exausta. Antes de sair, ainda olhei com toda a ternura que pude para aquele rosto singelo, emoldurado pelos cabelinhos ralos e brancos, e mandei um beijinho de longe, tentando imitar o gesto que ela tantas vezes havia feito para mim quando começava a descer a ladeira depois de nossas agradáveis tardes.

Soube logo cedo, pelo caixa da padaria, que Dona Menão havia falecido na madrugada e que o enterro seria às quatro da tarde. Havia bastante gente naquele funeral simples. Eram vizinhos, clientes, amigos e as senhoras da igreja, que nunca perdiam a chance de ver o Padre Hipólito falar, fosse qual fosse a ocasião. O caixão era simples e as flores, em sua maioria, colhidas e não compradas como quando o defunto era rico. Choro houve pouco. A senhora era muito querida, mas já estava bem velha e a doença ajudou a preparar as pessoas para a despedida. 

Levei ainda umas semanas para ver o que havia na pasta de couro que Dona Menão me havia presenteado com tanta ponta e orgulho. Terminei de escrever o texto para o mestrado e já me preparava para deixar a cidade quando, num fim de tarde, perto da hora em que costumava ir ver minha amiga, sentei-me no alpendre, com a derradeira garrafa de pinga com jabuticaba e um copinho na mesa em frente e a bolsa no colo.

Ao abrir o fecho, um cheiro de papel velho subiu forte e espesso. Eu realmente gostava daquele odor. Puxei um pilha de folhas em formatos vários e diversos tons de amarelo e marrom. Eram recortes de jornal com fotos, cartas, bilhetes e documentos de família que a velhinha havia colecionado durante anos, na vã esperança de um dia poder lê-los com seus próprios olhos e habilidades. Numa revisão rápida percebi 1950, 1962, 1970. Eleições, certidão, crônica. Letras e números fervilhavam em minha cabeça. 

Filhos eu não teria, por opção. Árvores já havia plantado umas quantas. Daqueles pedaços de história nasceria o tão sonhado livro. Das funduras daquele Goiás, guardado numa gaveta improvável, o tesouro de Dona Menão se tornaria o volume Crônicas Adaptadas em que ainda estou trabalhando e cujo delicioso conteúdo espero poder compartilhar com todos os que como eu sabem apreciar uma boa chachaça, uma bom fim de tarde e algumas histórias que o tempo amarela, mas que sobreviverão enquanto alguém teimar em relê-las!



Por Fabiana Queiroz Damasceno, amante da vida, das palavras e de uma prosa instigante. A moça do sorriso largo, que deixou uns textos rascunhados em cadernos, agendas e computador, apostava que as histórias sobrevivem enquanto alguém tiver interesse em lê-las.

Gabriel Garcia





Homenagem 80 anos Wilson Ibiapina