EMERSON SOUSA
Coquetel na Confederação Nacional da Indústria, em Brasília, com a participação do presidente Figueiredo.
O presidente da CNI, Albano Franco, era o cicerone e anfitrião da comitiva presidencial. Depois dos salamaleques de praxe nessas ocasiões, integrantes da equipe de Figueiredo conversavam em pequenas rodas com empresários e políticos. Uísque e acepipes diversos eram servidos fartamente por garçons em trajes esmeradamente brancos.
Os repórteres que efetuavam a cobertura formavam um grande grupo na espreita de alguma autoridade desgarrada para comentar os rumos da economia, a produtividade industrial em queda e, o óbvio: política.
Lá pelas tantas, muitos uísques rodados e muita descontração, passa pelo grupo da imprensa, de volta do toalete, o general Moraes Rêgo, que tinha sido chefe do Gabinete Militar.
Atraído pelos chamamentos e pelo espocar dos flashes antes apenas dirigidos a Figueiredo, Moraes Rêgo se chega ao grupo sendo logo rodeado por mais de uma dezena de profissionais da imprensa.
A conversa começou com amenidades, passando por um pouco da cerimônia, economia e, por fim, indaguei dele do prestígio que Figueiredo gozava naquele período de início da abertura política, junto a seus companheiros de caserna.
Esse foi o ponto inicial que descambou para uma conversa memorável. Ele falou de resistências ao nome de Figueiredo na sucessão de Geisel. Perguntei como se deu isso e ele, sem em momento algum pedir off ou reserva, fez uma narrativa contundente e minuciosa.
Ninguém anotava, mas todos prestavam atenção na conversa que ocorria em grupo.
O general falou da ação desencadeada nos bastidores pela Comunidade de Informações então dividida em pró e contra Figueiredo. Muito dessa resistência decorria de Figueiredo ser General de Divisão, e não de Exército.
Moraes Rêgo citou a linha dura do oficialato sob o comando do então ministro do Exército, Silvio Frota, que resistia a indicação por postular ser o substituto de Geisel. Falou da posição divergente adotada pelos comandantes do 1º, 2º e 3º Exércitos no episódio e, lembrou até mesmo, que alguns setores do oficialato ameaçavam peitar o presidente Geisel.
Moraes Rêgo ressaltou a firmeza e teimosia do presidente Geisel em torno do nome de Figueiredo, principalmente por temer que outro nome da linha dura comprometesse e abortasse o processo de abertura política.
Nesse ponto ele abordou, de passagem, a demissão do Ministro do Exército, Sylvio Frota, por Geisel.
Esse fato teria ocorrido no gabinete presidencial quando Frota, numa tentativa de desestabilizar o presidente, convocou reunião no QG do Exército, o chamado Forte Apache, com todos os integrantes do alto comandante do Exército. O assunto: sucessão presidencial.
Numa manobra de enxadrista, Geisel determinou um procedimento que mantivesse esse oficialato isolado, sem comunicação entre si. E, em seguida, convocou esses mesmos militares, no mesmo horário, para uma reunião no Palácio do Planalto.
No aeroporto JK, militares de Geisel e de Frota, ambos da mesma patente, aguardavam os generais que chegavam numa disputa para dirigí-los ou para uma reunião com o presidente no Planalto ou com o ministro do Exército, no QG do Setor Militar Urbano.
Um detalhe foi marcante nisso: o militar enviado por Geisel era mais antigo que o representante de Frota e, na caserna, antiguidade é posto. Assim, ele foi mais convincente.
Depois do fracasso de Frota na convocação ele foi chamado ao Planalto. Nesse encontro Geisel e Frota, o diálogo teria sido curto e grosso:
“O senhor sabe por que está aqui?" Indagou Geisel.
Sem titubear Frota foi logo ao ponto crítico:
“Meu cargo está à sua disposição “, disse.
Geisel retrucou:
“Sempre esteve”.
E Frota:
“Então o senhor me demita”
E Geisel firme:
“O senhor está demitido”. E encerrou o encontro.
Moraes Rêgo não entrou em mais detalhes desse encontro. Mas admitiu manobras do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil, favoráveis a Figueiredo e da oposição de Hugo Abreu, da Casa Militar, no processo dessa sucessão. Também este último queria ser o sucessor de Geisel.
Já era bem tarde quando o coquetel foi encerrado. Com isso, eu tinha certeza que dificilmente algum colega faria matéria sobre a conversa.
No dia seguinte, eu e Memélia Moreira - também repórter da Folha e que estava no coquetel e havia participado da conversa - narramos o teor do encontro com Moraes Rêgo ao diretor da sucursal da Folha, Ruy Lopes, e nos sentamos para reconstituir o diálogo da noite anterior puxando pela memória. Nada tinha sido anotado.
Durante dois dias o assunto foi primeira página da Folha. Nenhum outro veículo noticiou a conversa.
No terceiro dia, o chefe da Redação, Haroldo Cerqueira Lima, o Leleco, de sua mesa no fundo da sala gritou para mim na outra extremidade: “Ligação para você”.
Eu atendi e uma voz forte e sonora do outro lado disse:
“Emerson? É o general Moraes Rêgo. Você sabe onde estou agora?"
Respondi: “Não general, não faço idéia”.
E ele: “Estou no QG, preso. Você me deu sete dias de cadeia. O que eu disse não podia ser publicado".
Ele se referia as normas da caserna que proibiam ao militar fazer publicamente manifestações políticas. Eu retruquei que sentia muito, mas destaquei que ele não tinha pedido qualquer reserva para a conversa. Lembrei a ele que a sua fala era um depoimento importante da história política que o país tinha vivido. Ele apenas ouviu.
Moraes Rêgo confirmou não ter pedido off e, já mais descontraído, foi extremamente correto. Disse que tudo o que eu e Memélia escrevemos correspondia à sua narrativa. Nada havíamos inventado.
Diante dessa bola que ele levantou, brinquei:
“General, o senhor quer que a gente leve cigarros?”
Ele riu e, mesmo preso, foi extremamente educado. Dias depois, um filho dele, engenheiro que morava em São Paulo, me ligou na Folha dizendo que o general queria falar comigo de novo.
Mas esse encontro nunca ocorreu.
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