LUIZ FARA MONTEIRO
Estávamos
no início de 2003 e minha mãe pediu uma carona até o Varjão, uma das
comunidades mais carentes do Distrito Federal. O destino era inusitado. Mas eu
nem fazia perguntas. Sabia que se tratava de uma visita relacionada aos seus
conhecidos da igreja. A cidade tinha fama de perigosa e violenta. A medida que
avançávamos pela avenida, pessoas nos olhavam desconfiadas. Alguns garotos de
rua saíam correndo em disparada. Certamente para avisar a alguém que
"estranhos" estavam na área. "Primeira e última vez que venho
aqui", pensei. Ao chegarmos no endereço, um senhor baixinho aparentando
sessenta e poucos anos nos aguardava na calçada. Ele vestia uma calça social
surrada e camisa em igual estado. Os sapatos originalmente pretos, estavam
amarelos de poeira e quase sem sola, de tão gastos. Os óculos de armação
dourada com lentes grossas denunciavam problemas na visão. “Esse é o irmão
Sebastião, meu filho”, minha mãe o apresentou.
Combinei
com minha mãe que a deixaria lá, já que uma amiga dela chegaria de carro logo
depois para a reunião de oração e a levaria de volta. Assim que fiz menção de
me despedir, seu Sebastião veio até a porta do carro e pediu licença: “O senhor
me dá 2 minutos para eu lhe passar uma mensagem?”. Meio sem graça, concordei.
Ele então nos convidou para entrar no lote com 3 casas. Sebastião Morava nos
fundos, num barraco de 2 quartos, sala e cozinha. Sentamos num sofá velho e
duro, quase totalmente coberto por um lençol igualmente encardido pelo tempo.
Algumas
madeiras do barraco estavam podres. Havia um buraco de meio palmo de diâmetro
junto ao piso de terra. O dono da casa, a filha com a neta e os dois filhos
adolescentes estavam vulneráveis a ratos e insetos. As telhas frágeis tinham
alguns furos que destacavam a entrada da luz solar. Certamente conviviam com
goteiras no período de chuva. Nos acessos aos outros cômodos, lençóis
pendurados substituíam portas para oferecer um mínimo de privacidade a quem
estava do outro lado.
Antes
que os convidados chegassem, Seu Sebastião pegou a bíblia, pôs a mão sobre
minha cabeça, e fez uma oração longa numa linguagem que lembrava o hebraico. Ao
final passou o tal recado: “Deus está enviando um beija-flor que passará sobre
seus ombros e te colocará sentado ao lado do poderoso”. E mais não disse. Como
não esperava nada, não posso dizer que saí frustrado. Mas o conteúdo enigmático
da mensagem fez com que eu me questionasse se não teria sido melhor recusar o
convite do anfitrião e seguir meu caminho.
Estava
no meu dia de folga e fui pra casa. Tinha prometido ao meu filho, então com 5
anos, que no final da tarde faríamos um piquenique no jardim. Ele viu algo
parecido num filme e queria repetir a experiência em família. Minha mãe já
estava de volta e, sentados no gramado sob a amendoeira ao lado da garagem
conversávamos com tranquilidade. De repente um beija-flor dá um rasante sobre
meu ombro direito. A presença daqueles pássaros na região não era novidade.
Havia muitas árvores no condomínio e frequentemente eles batiam ponto. Mas voar
tão próximo das pessoas, surpreendeu. Foi minha mãe quem me chamou atenção:
“Você viu? Lembra do que o irmão disse?”. Antes que pudesse pensar em qualquer
coisa, tocou o telefone fixo. Alguém atendeu e me chamou dizendo que era da
Radiobras, a empresa brasileira de comunicação do governo federal, onde eu
trabalhava. Levantei resmungando, já que era meu dia de descanso. Do outro
lado, uma assessora da presidência da empresa foi direto ao assunto: “Seu Luiz,
o senhor foi escolhido para apresentar o programa do presidente da República e
deve ir imediatamente para o Palácio do Planalto”.
Levado
pelo Wilson Ibiapina, comecei a trabalhar na Radiobras no dia 11 de setembro de
2001. Na verdade não trabalhei naquele dia. O clima na tv era de um formigueiro
pouco antes da tempestade. Repórteres, produtores e editores corriam feito
loucos de um lado pro outro para apurar informações e levar ao ar boletins
sobre os atentados às torres gêmeas. Fiquei perambulando entre a redação e o
estúdio, mas sem nenhuma função. Com exceção do Carlos Eduardo Cunha - o Cadú -
a quem eu iria substituir, não conversei com mais ninguém.
Semanas
antes do telefonema que interrompeu meu piquenique, fui convocado para uma
reunião junto a outros repórteres e apresentadores. Eugênio Bucci, presidente
da empresa, informou que a Radiobras seria a responsável pela produção do
programa semanal de rádio do presidente Lula. Pediu sugestões de formato, e
disse que escolheria um de nós para apresentar o programa. Era uma espécie de
concurso interno. Achei que aquilo era um jogo de cena. Eu era novato e estava
rodeado de pessoas muito experientes e conceituadas. Com certeza estava ali
apenas pra fazer número e dar um caráter democrático ao encontro. Além do mais,
eu não tinha nenhuma relação com o Partido dos Trabalhadores e muito menos com
o presidente da República. Fui contratado na era FHC, quando Carlos Zarur
presidia a empresa e João Carlos Gonzalez dirigia as TV's do grupo. Mas para
não dar impressão de ter ignorado um pedido dos novos mandatários, bolei uma
solução fácil para me livrar logo daquela tarefa. Lembrei que na 105 FM tinha
um amigo que imitava o Lula com perfeição. O locutor Luiz Carlos Ximenes, que
anos antes me levara para trabalhar na Rádio Manchete, topou fazer o papel de
presidente enquanto eu formulava perguntas. Gravamos um excelente programa
piloto sob a supervisão do operador de áudio Márcio Leal, o Bola. Segundo o
Márcio, e só na cabeça dele, eu era o locutor que mais arranjava fãs na rádio,
e por isso me chamava de Rei do Gado: "O programa ficou bom e 'o homem'
vai gostar, Rei do Gado".
Entreguei
o dvd para o Bucci. Era um embrião do Café com o presidente. Estávamos nos
primeiros meses da administração Lula e o governo, é claro, tinha milhares de
planos e projetos importantes para tratar. Semanas se passaram e eu nem
lembrava mais do projeto. Quando ligaram para minha casa e ouvi o recado da
assessora, comecei a rir sem parar. Não de felicidade, mas por puro nervosismo.
Palácio do Planalto? Presidente Lula? Programa semanal com o homem? O que esses
caras viram em mim? Coçei a cabeça e falei em voz alta: “Vai dar merda. Tô
ferrado”.
Ao
me dirigir ao Palácio, me ecoaram as poucas palavras do irmão Sebastião. “Deus
está enviando um beija-flor que passará sobre seus ombros e te colocará sentado
ao lado do poderoso”. Na época ainda pensei que fosse um aviso de que eu ia
morrer em breve e "iria pro céu", apesar de achar que não merecesse.
Mas a ficha caiu: “Ah, é o poderoso do Brasil, não o Criador, ufa!” Nos 5 anos
seguintes me sentei ao lado do “poderoso” brasileiro. A convivência, as
gravações e as viagens talvez serão contadas no futuro. O Fábio Ibiapina, filho
do Wilson, que só me chama de "Lex", brinca constantemente comigo:
"Lex, o Zarur é puto com o João Carlos até hoje por sua causa". E
imita o ex-presidente da Radiobras dando o fictício esporro no João, que
oficializou minha contratação: "Tá vendo, João, falei pra você não
contratar aquele neguinho, o cara ficou famoso e foi servir ao PT, nos deixando
na mão. E ainda tenho que dar explicações ao FHC".
No
dia seguinte ao anúncio de minha nova função voltei ao Varjão para dar a
notícia ao nosso amigo. “Me chamaram pra trabalhar com o presidente da
República”, contei, esperando uma reação de surpresa dele. Foi como se eu
tivesse dito que trabalharia com o seu Zé da mercearia. Sebastião achou a coisa
mais normal do mundo e quis saber: “Ainda não te falaram da voz?”. Respondi:
“Sim, sim, é com a voz, é o programa de rádio do Lula, mas não vou aceitar, não
estou preparado”. Ele balançou a cabeça e disse: “Para com isso, cadê a sua fé,
homem de Deus?” Tempos depois numa outra conversa, Sebastião me interrompeu e
voltou a perguntar: “Ainda não te falaram da voz?”. E de novo respondi que sim,
que era um programa radiofônico. “Tadinho, tá meio gagá”, pensei. No dia
seguinte, ao chegar na empresa, fui convidado para também apresentar a VOZ DO
BRASIL.
"Esse
velhinho deve ter um informante muito bom lá na presidência”, pensei.
Em
maio de 2007, o presidente da República foi a Londres para a reinauguração do
estádio de Wembley, onde a Seleção enfrentaria os ingleses. Fui escalado para
acompanhá-lo. O roteiro incluia India e Alemanha. Pela programação, de Londres
eu seguiria direto para Berlin, onde aguardaria o retorno de Lula da India. Na
Alemanha, o "P-R", como chamam o presidente, participaria como convidado
de uma reunião do G8, os países mais ricos. Falei com Sebastião da viagem e
sobre minha folga de 4 dias na Alemanha. “Estava mesmo precisando descansar”,
eu disse todo feliz. “Não vejo você descansando nessa viagem não”, ele
respondeu. “Ah, sim, claro. Deve ser porque vou farrear muito”, brinquei. Ele
insistiu que não haveria folga. "Pô Sebastian, tá secando meu passeio,
né?", reclamei. 5 dias antes do embarque, no domingo à noite, quando o
presidente chegou no estúdio improvisado do Palácio do Alvorada para gravar o
programa, me perguntou: “E aí, Lulinha, você vai pra India?”. Sem querer
demonstrar o prazer pela folga na Alemanha, respondi meio em tom de lamento:
-
Vou não, presidente!
-
Porra, mas por quê”?
-
Porque não tem vaga no seu avião.
Lula
virou-se para seu chefe de gabinete e num instante acabou com minha felicidade:
“Gilberto (Carvalho), põe o Lulinha no voo comigo”. Dei o sorriso mais amarelo
da minha vida, e falei: "Ah, legal!". Adeus folga em Berlin.
Sebastião acertou mais uma.
Anos
mais tarde senti necessidade de buscar novos desafios. Comentei com Sebastião
que queria deixar o jornalismo institucional. “Tem coisa nova vindo por aí.
Você vai cruzar o oceano”, ele me disse. Imaginei tratar-se de outra viagem e
não me animei muito. Mas não surgiu viagem alguma. Semanas depois, em dezembro
de 2007, a TV Record me fez uma proposta para estrear o DF no Ar. Comentei com
Sebastião. Ele só acenou positivamente com a cabeça. Gravei um piloto na
quinta, 27, à tarde. Parecia tudo acertado. Viajei de carro no sábado, 29, para
Angra. E pensei: “Desta vez ele errou, não vou cruzar oceano algum”.
Ao
passar por Belo Horizonte, meu celular tocou. Era um emissário da Record:
-
Estava vendo seu currículo. Ainda bem que você fala inglês, né?”
-
Por quê?
-
Porque depois de estrear o jornal em Brasília você vai pra África do Sul.
Querem um correspondente para a Copa.
O
tempo me mostrou que Irmão Sebastião era um homem com o dom da premonição.
Demorei para entender como cabia tanta fé naquele homem sofrido, que vivia num
barraco caindo aos pedaços, literalmente, e cheio de problemas pessoais: filhos
adolescentes convivendo com más companhias, ex-esposa que o abandonou e levou
tudo, energia cortada por frequente falta de pagamento. Ele acrescentava um
"i" sempre que pronunciava a palavra "dificuldade".
"Deus põe 'dificulidades' na vida pra gente crescer, meu filho. Quando é
muito fácil, o tombo é grande. Temos que persistir e orar".
A
cada visita que eu fazia, uma sensação de paz, conforto e força. Levei uma
amiga certa vez. Ela gostou tanto que passou a frequentar sempre a casa do seu
Sebastião. Comentei com ele que da primeira vez que fui ao Varjão, prometi a
mim mesmo que não voltaria lá. "O homem é falho, meu filho. Só as
promessas de Deus contam". E acrescentou: "O homem repara onde
moramos, o que vestimos, o que comemos, quanto ganhamos. Mas pra Deus os
critérios são outros. Presidente, médico, faxineiro, somos todos iguais".
Certa vez cheguei chateado, dizendo que estava desmotivado por estar sendo mal
aproveitado num determinado projeto. "Mas eles sabem que você é capaz.
Quem está perdendo não é você, é o projeto. Paciência, homem".
Sebastião
não vive mais no Varjão. Mudou-se pra longe. Ele é um exemplo de como ser
perseverante. Para superar obstáculos tem só um segredo: "nunca
desista", dizia. O senhor baixinho, que não passou da quinta série,
sofrido, maltrapilho e sem dinheiro no bolso, mostrou que a fé remove montanha,
guia beija-flor e consegue vaga para um simples mortal até em voo presidencial.
Muito interessante tudo no seu tempo e fé. Gostaria de ter conhecido Sebastião.
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