domingo, 20 de maio de 2012

O JULGAMENTO DO SOLDADO ABACAXI





 Durval Aires Filho*

Quando o diligente repórter fotográfico Evilásio Bezerra, do Jornal O Povo, recebeu a pauta e se dirigiu para a Rua Barão do Rio Branco, esquina com a Rua Pedro Primeiro, sede da agência dos peixinhos, não pensou em encontrar aquilo que os humoristas profissionais chamam de "piada pronta", a propósito de situações ridículas que envolvem políticos e autoridades, pelo que fazem, deixam de fazer ou revelam, através de mal-entendidos, ou  gafes,   produzindo, na maioria das vezes, murmúrios, assombros, ou largas risadas. Digo diligente, porque nem sempre se pode dizer da presteza ou da disponibilidade profissional. Meu pai que era jornalista, certa vez, mandou o fotógrafo Edson Pio à Escola Normal, pois ali os professores estavam em greve, meio a diversas manifestações de pais, mestres e alunos. Chegou tarde. E fez as imagens de um colégio com portas cerradas. Advertido por meu velho, o tarimbado fotográfo poderia arrebatar um prêmio, a foto da semana. Volvendo ao laboratório, Edson fez uma montagem.  As portas abertas de uma catedral serviram na medida exata, na mesma proporção que apagaria o seu atraso, e a Escola Normal, devido a um truque que nunca ninguém desconfiou,  ganhou uma certa opulência e respeito. Foi a primeira página da velha Gazeta de Notícias, um jornal vespertino que foi responsável por uma geração de bons jornalistas.

A missão de Evilásio naquela manhã era rotineira: realizar uma cobertura sobre um movimento contra a privatização do Banco do Estado do Ceará, promovido pela associação dos seus  servidores e o sindicato dos bancários. Para o evento,  o então presidente da entidade mandou distribuir abacaxis para os participantes. Isso para expressar justamente o imbróglio, a situação de vexame por que passavam os bancários estaduais. Pois bem: no local, juntamente com os manifestantes, o experiente profissional encontrou dois soldados, Aldemir e Fabiane, escalados certamente para oferecer segurança à população, no caso, os transeuntes, e,  igualmente, tinham o dever de zelar pela coisa pública, evitar excessos e badernas. Mas, logo verificando o clima de paz, os próprios fardados relaxaram e resolveram aderir a manifestação, quando inadvertidamente começaram a degustação da fruta tropical, após a distribuição de centenas deles, todos fatiados, segundo a notícia que acompanhou as imagens.

Naquela ocasião, a cena captada pela lentes imparciais revela que os policiais agiram como se estivessem em lazer, em pleno sábado de feijoada, apesar de fardados. Evilásio não contou pipocas: "click". Não deu outra:  no dia seguinte, a foto dos folgados soldados, comendo e saboreando abacaxis, foi a primeira página do matutino.  Ainda naquele mesmo dia, o click da máquina fotográfica, além de gerar informação impressa, faria pequenos estragos. Os soldados sofreriam punição  por parte de seus superiores, pois teriam faltado a ordem, a hierarquia e a disciplina. 

O chargista Clayton, no outro dia,  brincou: reproduziu o casal, enquanto um deles dizia: "êta abacaxizinho azedo!". E, em revista do próprio impresso diário, foi a foto da semana: dois singelos militares comendo abacaxis no descuidado dia de uma quinta-feira, do mês de outubro do  recuado ano de 1997.




Acontece que, segundo informou a dupla, em termos de dissabores,  não ficou somente na exposição da imagem e prisão disciplinar. Na caserna, pelo comportamento desprevenido, Aldemir logo recebeu o apelido de "soldado abacaxi". Retaliações também receberam no âmbito mais particular, sendo ambos ridicularizados pelos amigos e parentes próximos e remotos. Daí procuraram um advogado e este causídico ingressou, naquela mesma época,  com uma Ação de Indenização por Dano Moral, alegando, em benefício dos postulantes, o direito constitucional a imagem e a privacidade. Assim, o Jornal, por sua graça,  teria que reparar o estrago causado no âmbito subjetivo, devido a divulgação desautorizada. Muitos anos depois, em grau de recurso, após indas e vindas, atos e ritos, o processo estacionou no meu gabinete e, sobre ele, fui informado de que se tratava de "meta dois", feitos atrasados que, conforme estatísticas do CNJ, deveriam ter sido julgados desde 2009.


Depressa, instado ao julgamento da peça processual, li e reli o conteúdo do apelo que não me comoveu, nem mesmo com a alegação séria de pisoteamento ao texto constitucional, antes me colocou dentro de uma moldura de riso e de puro relaxamento. Momentos depois, restabelecido da comoção hilária, soltei o seguinte, no dia de seu julgamento em plenário: "Fatos insignficantes que não gera dano indenizável, ainda mais quando os promoventes deram causa para o evento. A jurisprudência nacional tem admitido que fatos dessa natureza não têm o potencial para responsabilizar a empresa jornalística que não extrapolou, que não adulterou imagem colhida em local público, em manifestação coletiva, por agente público em pura distração. Foto publicada em jornal que não teve qualquer propósito de exposição do autores de forma ofensiva, senão a busca pelo "furo" jornalístico.

O Presidente da Câmara, desembargador Ernani Barreira Porto, sorriu, fez algumas considerações de estilo, até porque naquela sessão, sua excelência, havia julgado uma ação semelhante e, ao finalizar, me agradeceu efusivamente, de modo afetivo e alegre, como se estivesse a comemorar alguma coisa. Sorriu ao dizer "obrigado pelo dia". Era mais um dia comum de trabalho e igual a tantos outros, mas com uma pequena singularidade, daí o motivo do agradecimento. E, aí, eu compreendi como o cotidiano das pessoas é muito rico; como é interessante a nossa vida privada, com certeza, uma matéria prima que permeia a tantas esferas, e, normalmente, conduz a surpreendentes efeitos e a  desconsertantes resultados.
 
 
* Durval Aires é desembargador do TJC

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