domingo, 7 de setembro de 2014

O CEARENSE E A ENCOMENDA



Marisa Mamede (Fortaleza)

É conhecida a mania do nordestino em geral, e do cearense em particular, de não desperdiçar a ocasião de mandar uma “encomendazinha” a um amigo ou parente.

Mas o que nunca se estudou é qual o papel desse hábito milenar na estruturação das redes de cearenses pelo mundo. Quem é cearense e já morou fora do Ceará sabe do que eu estou falando – são poderosíssimas! Capazes de detectar um cearense extraviado a centenas de quilômetros de distância, e trazê-lo para dentro de uma malha de amizade e solidariedade (entre outras características menos virtuosas), por mais que o cabra queira se extraviar. Impossível. Vai ter sempre uma encomendazinha que a tia-avó materna mandou para a filha de um sobrinho que não se pode deixar de entregar. E aposto que muito namoro e casamento assim já foi feito. 

E uma vez estruturadas e seguidamente reforçadas as redes através de encomendas daqui pra lá e de lá pra cá, o que fazem os cearenses quando se reúnem em seus sublimes guetos? Contou-me uma amiga cearense na Paulicéia: a gente ri bastante, conta piada, bebe um bocado, até que alguém colocar um disco do Ednardo e dali a pouco vai todo mundo embora pra casa chorando... É, não se pode ocultar que uma das funções dessas redes é partilhar as saudades da terrinha, sentimento que nunca deixa de habitar o coração de um cearense exilado, e que costuma acentuar-se com a idade e o tempo de exílio, especialmente nas metrópoles. 

Gosto de colecionar histórias de encomendas. Não esqueço de um relato ouvido de alguém que veio visitar um amigo em Brasília, nos idos dos anos 80. O camarada vinha do Iguatu, quase sem escalas, pousar uns dias no Lago Norte, bairro de classe alta. E sua mãe tinha mandado pra comadre, mãe do amigo, dois dos maiores clássicos: farinha e rapadura. Bem embrulhadas em papel de bodega, arrematado com barbante. Chegando ao aeroporto, foi apanhado em um carro moderno e atravessou o eixão em alta velocidade pra entrar no Lago Norte, achando tudo incrivelmente sofisticado.

No caminho ia ficando pequeno ao pensar no pacote. – Meu Deus, como vou dar um presente desses a uma gente tão rica? Vontade de jogar pela janela do carro. Chegando a casa do amigo, portão automático. Eita, danou-se!... E chegou e conversou e contaram casos, e falaram de saudades. Passeio pra cá e lá, e o embrulho na mala. Ao menos a mãe não tinha ligado. Quase perto de ir embora o sentimento filial falou mais forte e ele foi lá, respirou fundo e entregou a encomenda para a comadre da sua mãe, que exultou de alegria.

O artifício pode ser aperfeiçoado de várias maneiras. Itens perecíveis quando o encontro deve ser feito rapidamente, itens pesados quando é preciso demonstrar amizade leal, itens vários quando se trata de saudade acumulada. O importante é não desperdiçar o portador, nem sua franquia de bagagem. 

Entre lembrancinhas e presentões, muita mercadoria circula mundo afora pelas mãos de hábeis cearenses. Soube de um caso de uma buchada pronta que foi parar nos Estados Unidos. Aliás, os produtos locais são sempre os campeões: cachaça, queijo coalho, carne de sol, castanha de caju... Manteiga da terra é também iguaria muito apreciada, especialmente quando o próprio portador é um mala, e merece correr o risco de que o conteúdo extravase do recipiente durante o transporte. 

Quando são os portadores que presenteiam, a liberdade é total! Nesse quesito ninguém supera uma mãe cearense que vai visitar um(a) filho(a) no exterior. 

Foi assim que eu já busquei junto com a minha mãe no aeroporto Charles de Gaulle, um quilo de feijão verde, queijo coalho e maxixe. Minha felicidade era total comendo aquilo tudo temperado com coentro, como manda o figurino. Calorzinho cearense em pleno inverno parisiense. 

Outro dia inaugurei o conceito de meta-encomenda. Mandei por um primo uma encomenda dentro da outra. Ele deve entregar tudo na casa de uma amiga, que deve por sua vez ir levar um presentinho para outra amiga. E porque não pedir 
pra entregar as duas encomendas, uma de cada dez? Primeiro porque convém não abusar de um portador de boa vontade, dando-lhe mais serviço do que o estritamente necessário. Segunda e mais forte razão porque, organizando assim a rede de distribuição, a primeira amiga terá que ir visitar a outra e espero que daí venha uma aproximação entre as duas, vizinhas no bairro do Papicu. Sim, porque a encomenda pode ser usada no sentido reverso também, de outros lugares pra terrinha. O importante é não desperdiçar o portador.

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